domingo, 27 de dezembro de 2020

Tem alguma coisa na água (Liliane Prata)

- Bonita, estou adorando ficar com você, mas, infelizmente, vou ter que terminar tudo, porque isso vai fazer um bem danado para o meu ego.
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- Por favor, moça - disse para a diarista, saindo do quarto enrolada no lençol. - Acho que engoli sem querer um vazio, você pode tirá-lo aqui de dentro?
A diarista enfiou o bocal do aspirador na boca de Cecília e ligou o aparelho na máxima potência.
- Tô me sentindo pior ainda - Cecília disse.
- Vish! Acho que depois de sugar o vazio, aí dentro fica mais vazio ainda. Tem que encher com alguma coisa... Por que você não toma um pouco d'água? 
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Na banca de jornal, os jornais anunciavam que o congresso mundial de matemáticos estava sendo organizado com urgência. Desde que os círculos passaram a ser considerados quadrados para alguns, e losangos para outros, o que aconteceu pouco de pois de o sinal de somar ser defendido por importantes setores da sociedade como de dividir, e o sinal de subtrair ser acusado de sempre ter multiplicado, linhas de montagem foram interrompi das, pontes e prédios desabaram na inauguração, aviões caíram, a bolsa de valores entrou em colapso e uma onda de estudantes passou a questionar suas notas. 
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A poucos metros da casa de Fabíola, havia um pet shop peque A no, chamado Pet Shop Pequeno, que, além de pequeno, era mal iluminado e cheirava permanentemente a cachorro sujo - o que não dava para entender, já que o dia todo via-se alguém ensa boando exageradamente um cachorro, mas o cheiro de cachor ro sujo permanecia lá, nem tudo é compreensível nesta vida. O dono do pet shop era o seu Osvaldo, um senhor que tinha um desses rostos que, quando a boca sorri, só a boca sorri, os olhos parecem nunca entender a graça das coisas. Fabíola sempre saía do pet shop um pouco mais triste do que tinha entrado. 
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(Mesmo assim, a cada ano, era construído mais um cemité rio invisível. Alguns parentes das vítimas reclamavam que não conseguiam encontrar os cemitérios pelo GPS, mas a prefeitura garantia que eles estavam lá. A maior parte dos parentes, porém, achava bom não ter como comparecer ao enterro, um evento, afinal, cheio de energia negativa. Foi assim que o hábito de en terrar os mortos foi caindo em desuso: com vestígios de facadas invisíveis ou não, os corpos eram levados para as periferias da cidade e deixados em lotes vagos, onde eram devorados pelos corvos. Nas calçadas dos melhores bairros, os vivos passavam com seus sorvetes, fones de ouvido e pensamentos positivos. 
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A questão é que Taís mal se lembrava do último final de semana sem ir à prisão e começava a sentir falta de outras coisas, embora não soubesse bem do quê. Então, numa noite, sonhou com sua avo, morta havia alguns anos, lhe sugerindo um "jejum happy". Fazia anos que Taís não sonhava e ficou muito impressionada.
Assim que começou a jejuar, Tais foi se sentindo meio es quisita, mas também foi sentindo vontade de encher as paredes de sua casa de quadros. Foi isto que passou a fazer nos finais de semana: emoldurar e pendurar pôsteres, fotografias e pinturas guardadas havia muito tempo nos armários. Depois, ela come çou a encher a casa de plantas e livros. Ás vezes, seu peito doía e ela chorava, mas havia resolvido fazer um jejum também dos so niferos. Nessas horas, sentava no sofá, tomava um chá, chorava mais um pouco, tocava violão, desenhava ou apenas ficava sem fazer nada, até que o mal-estar passava.
Lá fora, as ruas quase vazias.
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A mãe lhe deu um abraço quentinho, mas tão quentinho, que Ricardo a enrolou em volta do seu pescoço para usá-la como cachecol. 
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- Meu filho era uma peste, nunca queria fazer a lição de casa, e quando viu Amanda a lição de casa fez ele. Agora eu tenho um filho novo em folha, muito melhor que o anterior.

sábado, 5 de dezembro de 2020

Reinvenção da intimidade: políticas do sofrimento cotidiano (Christian Dunker)

Solidão: modos de usar

A razão diagnóstica adora devorar tragédias. 

Sem a experiência da própria solidão, a vida nos parecerá postiça, artificial ou vulgar.

Solidão não é apenas introspecção ou introversão, mas dissolução da própria solidez do ser.

Antes de suspeitar da normalidade do vizinho solitário, vejamos se ele não está a nos fazer lembrar nossa própria solidão maltratada.

A solidão e o esvaziamento, ao lado do tédio e da apatia, foram os primeiros diagnósticos de época entabulados por Hegel ainda no século 19. Em outras palavras, o isolamento, a introversão ou a introspecção São respostas subjetivas que nem sempre são uma opção ou se iniciam como uma "escolha livre e" mas que gradualmente podem assumir o feitio de um processo incontrolável, no interior do qual isolamento gera mais isolamento.

O ressentido pode estar sozinho isolado; geralmente ele procura isso, mas não está de fato só e separado. Na verdade, ele não consegue se desligar de certos sentimentos anteriores e passa então a ressenti-los na solidão de seu quarto ou na antessala do sono.

O sujeito que está solitário, mas "pode" perfeitamente ira uma festa, frequentar a escola ou ver os amigos, está aquém da linha. Aquele que apenas acha que pode , mas quando exposto a uma prova direta recorre ao autoenganoso Mas quando eu quiser eu consigo, irmão do similar alcoolista Quando eu quiser eu paro, deve se preocupar. Estão aqui todas as depressões, as distimias, as obsessões e as estratégias de dizer não para o Outro. Muitas pessoas acabam desistindo de amigos que se isolam, pois acreditam na declaração nominal de que ele não quer", então o que vamos fazer, senão respeitar a "opção". A coisa não é bem assim, já dizia Kant, pois até que ponto o sujeito é livre para querer ser livre? Até que ponto a vontade é livre para ter vontade de vontade?

A solitude intensifica certas experiências perceptivas e imaginativas. 

Muitas separações objetivas mostram-se retrospectivamente apenas uma ação para reintroduzir parênteses de solidão em uma vida poluída por ocupações e tormentos.

Não se trata apenas de quietude, isolamento e esvaziamento, mas de um conjunto de sentimentos altamente necessários para a saúde mental, sumariamente: estranhar a si mesmo, espantar-se com o mundo, perceber-se contraditório, fragmentado, múltiplo, diferente de si mesmo, frágil, vulnerável, capaz de sobreviver e de "suportar-se".

Durante boa parte de nossa história cultivamos a solidão como experiência enriquecedora:

a) Na filosofia: a meditação grega (premeditação dos males), o retiro monástico, a meditação investigativa (como em Descartes), a introspecção psicológica.

b) Na arquitetura: os inúmeros dispositivos para favorecer o cultivo da solidão, como os jardins ingleses (feitos em for ma de labirinto para que a pessoa possa se perder e, por tanto, se reencontrar), os claustros, os átrios, as criptas, os escuros do barroco

c) Na pintura: o tema da paisagem e seu correlato, o retrato. d) Na poesia: o tema da saudade, do desterro, da perda e do amor inconcluído.

e) Na literatura: quase todos nossos heróis são solitários (de forma voluntária ou involuntária), Dom Quixote, Hamlet, Don Juan, Robinson Crusoé, Fausto, o flâneur de Baudelaire, nosso Brás Cubas e assim por diante.

Esta nova forma de isolamento, vamos chamá-la de isolamento oriental, é uma espécie de suspensão da demanda, que não pede nada e que não oferece nada, e se concentra apenas na construção de muros. Ao elevar a "vontade livre" ao paroxismo, podemos ver, através de sua forma de vida, até que ponto nossa forma de vida é inviável, orientada pelo binômio bipolar produção-consumo.

A oferta de poder se contactar com qualquer um gerou fenômenos de sexualização e de condominização.

Microlugares, nos quais nos instalamos e depois de alguns meses não saímos mais.

Assim como no mundo real, a introspecção e o isolamento são vencidos à custa de muito trabalho "hermenêutico", ou seja, à custa de muita decifração de códigos, discursos, esquemas de relação e formas de intercâmbio que se dispersam em ambientes muito diversos. Por exemplo, dá muito, mas muito trabalho encontrar alguém por meio de sites de relacionamento do tipo Par Perfeito, mas a graça talvez esteja justamente nesse esforço.

Contentamo-nos cada vez menos em ser uma coisa no trabalho e outra em casa, em desejar de uma maneira na família e de outra na carreira, em nos expressar de uma forma com os amigos e de outra com os colegas. Forçamos assim os limites para a sustentação de identidades segundo critérios cada vez mais exigentes de autocoerência e autenticidade. Contar-se ape nas como mais um, sentir-se irrelevante, perceber-se consumindo e opinando como todo mundo gera cada vez mais dissonância. Há cada vez menos conforto em se perceber como parte de uma comunidade de semelhantes indiferenciados.

Nos sentimos como um tubo pelo qual as coisas passam, mas nada de relevante fica e é realmente digno de ser vivido.

Daquele que se sente solitário em meio à multidão: não é que ele se sinta vazio, mas ele não sabe mais quem ele é e às vezes não se preocupa com isso. 

O isolamento com relação ao outro pode levar a uma impressionante capacidade de autodeterminação, à apatia ou desespero e incerteza.

O temor da solidão é o temor do deserto e o temor do desterro, A maneira mais simples de reencontrar a própria solidão é a viagem solitária: a leitura e a música em primeiro lugar, mas a via gem real também, como em Comer, rezar, amar (Eat, pray, love, Ryan Murphy, 2010).

A segunda pior experiência de solidão é aquela que se vive quando nos sentimos anônimos em meio à massa, quando sentimos que todos os outros pensam, agem e vivem de uma maneira diferente da nossa e que a nossa diferença é uma diferença que não faz diferença.

A solidão benéfica nunca se estrutura em torno de Eu não preciso do outro. É justamente quando me dou conta de que preciso do outro, mas não absolutamente, que a solidão se torna um espaço criativo. Ou seja, nesse momento ela deixa de ser sentida como experiência deficitária.

Solidão benéfica é solidão reconhecida. Cultivo da solidão é cultivo do Outro que nos habita.

Se alguém não é capaz de inventar uma vida interessante sozinho, se a coisa mais interessante que pode acontecer na sua vida é encontrar alguém que te diga que você é interessante, isso ocorre porque... você não é interessante.

Sabemos que precisamos de solidão quando não sentimos vazios ou isolados. As patologias da Solidão apontam que estamos em falta com a verdadeira solidão.

Os momentos de real importância na transformação ou passagem de um momento para outro ao longo da vida são precedidos por pequenos períodos de auto isolamento e esvaziamento de si. 

Auto isolar-se é uma maneira de deixar a voz e o olhar do outro esvaziar-se do Outro, de ver nossa própria situação "de longe" ou inversamente "em uma proximidade inexplorada". Por isso ela é considerada uma condição para o desenvolvimento da Autonomia e da Independência e da emancipação. Não porque isso gera uma individualidade que prescinde do coletivo social, mas porque isso permite reconhecer melhor o tipo de posição na qual nos encontramos em relação ao Outro. Em vez de isolamento, prefiro a palavra separação. Ou seja, separar-se do outro é um movimento, um tempo, que é absolutamente necessário para poder estar com outro.

Estar fazendo alguma coisa pode se tornar um antídoto venenoso contra a solidão, isso porque o trabalho da solidão é um trabalho de suspensão de si. Nada mais distante da verdadeira solidão do que aquele que a identifica com o conhecimento de si, pois afinal isso não é solidão, mas ocupar-se consigo mesmo, como aquele que se inspeciona diante do espelho.

É possível que a solidão tenha uma relação com um fenômeno conhecido como resiliência, ou seja, a capacidade de recuperar-se e de reconstituir laços rompidos ou precários. O conceito de resiliência tornou-se popular na psicologia da virada do século XX ao denotar principalmente nossa capacidade de recomposição. Na física, o fenômeno descreve a propriedade que um material possui de voltar às suas condições iniciais depois de passar por deformações. Sofrer fortes emoções ou afetos disruptivos não é um grande problema desde que não se espraiem tomando conta da vida do sujeito, reproduzindo-se indefinidamente em contextos distantes daqueles que originaram transformações iniciais. Foi assim, aliás, que Nietzsche chegou a este grande diagnóstico da modernidade, ou seja, o ressentimento. Sentir de novo, re-sentir, propagar e fixar-se ao que foi sentido uma vez, eis um critério negativo de resiliência.

Observemos que a emergencia do conceito de resiliência e o declínio relativo de seu conceito antecessor, o stress, pode ser entendido em um contexto ideológico de expansão do neoliberalismo.