quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Vergonha dos pés (Fernanda Young)

Vergonha dos pés (Fernanda Young)

- Your Highlight on Location 68-69 | Added on Thursday, August 13, 2020 3:43:41 PM

Quando estão entre vinte e trinta anos, depois de terem vivido e dito tantas verdades, já não sabem direito de mais nada. E ficam misteriosas para si mesmas, porque o enigmático não é mais charme e, sim, constância.

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Vergonha dos pés (Fernanda Young)

- Your Highlight on Location 101-102 | Added on Thursday, August 13, 2020 3:46:49 PM

Ana, que é uma mulher culta, odeia aquelas que passam a vida inteira acreditando que a coisa mais difícil do mundo é tirar cutícula sem arrancar um bife e, depois que parem, sentem-se Kants. Verdadeiras filósofas do existir.

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Vergonha dos pés (Fernanda Young)

- Your Highlight on Location 104-106 | Added on Thursday, August 13, 2020 3:47:15 PM

Para falar de Ana, é preciso repetir com frequência certas palavras: sempre, nunca, odeia, ama, não. É difícil narrar uma pessoa tão extrema. A literatura poderá tornar-se quase juvenil e fervorosa. Apesar do tédio em que vive, até ele, Ana defende. Pois ela defende aquilo que gosta ou não com o mesmo ardor.

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Vergonha dos pés (Fernanda Young)

- Your Highlight on Location 121-123 | Added on Friday, August 14, 2020 12:23:33 AM

Geralmente parece uma pessoa chata para aqueles que não a conhecem, e até para os que sim. Distante, sempre desligada dos grupos, pouco comunicativa com quem não tem intimidade. Mas capaz de conversar por horas a fio com os poucos amigos e de dançar noites inteiras numa boate.

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Vergonha dos pés (Fernanda Young)

- Your Highlight on Location 207-208 | Added on Friday, August 14, 2020 12:30:31 AM

Tem, portanto, a vida de um artista sem sê-lo. E esta é a maior crueldade que tem de se lembrar. Sabe-se medíocre. Por um triz, poderia não ser, mas sabe-se medíocre.

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Vergonha dos pés (Fernanda Young)

- Your Highlight on Location 501-502 | Added on Friday, August 14, 2020 12:52:12 AM

O passado é plástico, uma maquete acrílica. Fecham-se os olhos e vê-se tudo. Sabe-se ter vivido aquilo visto, mas não se vive mais nada.

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Vergonha dos pés (Fernanda Young)

- Your Highlight on Location 687-689 | Added on Friday, August 14, 2020 1:06:33 AM

Tudo, porque o Homem deseja a eternidade. Ele não tem fé suficiente para acreditar em vida após a morte, por isso quer durabilidade. Prefere se agarrar ao eterno em vida. E, para a grande e extensa maioria, a eternidade não virá em forma de obra-prima. Por isso, o casamento. Por isso, centenas de leis, promessas, amarras, justificativas.

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Vergonha dos pés (Fernanda Young)

- Your Highlight on Location 690-691 | Added on Friday, August 14, 2020 1:06:51 AM

Mas já tem a alma como uma blusa de seda furada por um broche. Não há nada o que se fazer a respeito. Nada.

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Vergonha dos pés (Fernanda Young)

- Your Highlight on Location 966-967 | Added on Friday, August 14, 2020 1:58:19 PM

Quando não inventa histórias ou se imagina morta num acidente de ônibus, Ana pensa em vestidos. É como se fosse a hora do recreio mental.

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Vergonha dos pés (Fernanda Young)

- Your Highlight on Location 1403-1405 | Added on Friday, August 14, 2020 2:25:01 PM

Ana olha, de fora, e não entende o que significa ser feliz – o que é isso lá por dentro, o que acontece com os órgãos de uma pessoa que vive com as cores, com o vento no rosto, que fica olhando um céu estrelado.

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Vergonha dos pés (Fernanda Young)

- Your Highlight on Location 1408-1410 | Added on Friday, August 14, 2020 11:59:53 PM

Ana a ser assim? O mesmo que leva as outras pessoas a serem como são. Um misto de coisas, a sua natureza, o seu passado, uma certa falta de talento para conviver com os outros. O inverso dessas coisas é o que faz Jaime ser tão espontâneo, tão feliz. E isso começou a perturbar Ana. Chegou a invejá-lo, ao mesmo tempo ficava entediada com toda essa alegria.

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Vergonha dos pés (Fernanda Young)

- Your Highlight on Location 1417-1419 | Added on Saturday, August 15, 2020 12:01:00 AM

Jaime deveria ter desconfiado daquelas atitudes não genuínas. Pois era “o reverso inevitável da paixão” de Ana. Ela percebeu que o seu coração estava endurecendo e, com medo de perder Jaime,

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Vergonha dos pés (Fernanda Young)

- Your Highlight on Location 1417-1419 | Added on Saturday, August 15, 2020 12:01:03 AM

Jaime deveria ter desconfiado daquelas atitudes não genuínas. Pois era “o reverso inevitável da paixão” de Ana. Ela percebeu que o seu coração estava endurecendo e, com medo de perder Jaime, passou a tratá-lo como um rei.

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Vergonha dos pés (Fernanda Young)

- Your Highlight on Location 1457-1458 | Added on Saturday, August 15, 2020 12:05:02 AM

Pensam que é fácil ter um corpo tão cíclico, que muda de temperatura, de peso, de ânimo para o sexo. Tudo em função do aparelho reprodutor.

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Vergonha dos pés (Fernanda Young)

- Your Highlight on Location 2275-2282 | Added on Saturday, August 15, 2020 1:02:19 AM

A manutenção das relações é delicada, requer boa vontade e cuidado. Qualquer casamento está sempre a um passo de entrar em declínio, é necessário um senso de equilíbrio digno de malabaristas. Um pequeno tropeção em falso e o amor cai corda bamba abaixo. São palavras que devem ser pensadas, pesadas, medidas. Tratar o outro como uma pilha de cristais finos. Pois o ser humano é um amontoado de traumas. E cada um desses traumas merece atenção e tato, quase tratamento especial. Daí se faz a intimidade máxima: um conhece os problemas emocionais do outro, muito mais do que as suas mães ou os seus analistas jamais conheceram. É, no final das contas, essa sabedoria que sustenta os alicerces de um casamento. Mas mantê-los é tão cansativo que, às vezes, os casais duvidam se aquilo vale a pena. Se não seria melhor viver sozinho, do que ter que estar atento a tudo o tempo todo. Estar ligado às variações de humor do outro, às faltas de interesse físico, ao desânimo com a própria higiene. Estar acompanhado é um trabalho árduo, disfarçado de aconchego.

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Vergonha dos pés (Fernanda Young)

- Your Highlight on Location 2343-2344 | Added on Sunday, August 16, 2020 3:36:54 PM

Ali, pensou no amor. Percebeu que o amor se repete sem pudor. Ele é sempre o mesmo. Mudam-se os personagens, os textos.

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Vergonha dos pés (Fernanda Young)

- Your Highlight on Location 2513-2514 | Added on Sunday, August 16, 2020 3:46:54 PM

Pelo menos, naquela hora, achava que sim. Assim é a vida: você acha alguma coisa, com muita certeza, em determinado momento, e vaticina como verdade.

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Vergonha dos pés (Fernanda Young)

- Your Highlight on Location 2513-2514 | Added on Sunday, August 16, 2020 3:47:04 PM

Pelo menos, naquela hora, achava que sim. Assim é a vida: você acha alguma coisa, com muita certeza, em determinado momento, e vaticina como verdade. A vida é feita de verdades fugazes.

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Vergonha dos pés (Fernanda Young)

- Your Highlight on Location 2527-2529 | Added on Sunday, August 16, 2020 3:48:08 PM

Enquanto tirava as suas coisas de dentro das malas, chorou compulsivamente. As suas coisas. As suas coisinhas queridas. Para lá e para cá. Entrando e saindo de dentro das malas, dos sacos de plástico do supermercado. Ficou realmente sentida por ver tudo aquilo jogado no chão. Seus potinhos, suas quinquilharias repletas de lembranças.

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Vergonha dos pés (Fernanda Young)

- Your Highlight on Location 2552-2553 | Added on Sunday, August 16, 2020 3:49:50 PM

Quem cutuca, encontra e faz ferida.

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Vergonha dos pés (Fernanda Young)

- Your Highlight on Location 2850-2851 | Added on Sunday, August 16, 2020 4:03:52 PM

É que, quando as pessoas morrem, de alguma maneira, tornam-se puras. A morte limpa as coisas. É isso. Ana poderá lembrar-se de que teve um pai, e que ele morreu.

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Vergonha dos pés (Fernanda Young)

- Your Highlight on Location 2850-2851 | Added on Sunday, August 16, 2020 4:04:00 PM

É que, quando as pessoas morrem, de alguma maneira, tornam-se puras. A morte limpa as coisas. É isso. Ana poderá lembrar-se de que teve um pai, e que ele morreu. “E seu pai?” E ela responderá: “Ele morreu.”

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Vergonha dos pés (Fernanda Young)

- Your Highlight on Location 3067-3070 | Added on Sunday, August 16, 2020 4:14:52 PM

há, nela, uma culpa sem sentido. Uma “culpa kafkiana”, que embaralha os fatos de tal forma em sua mente que no fim, se disserem que Ana é a única culpada, ela aceita. É o mandado de prisão de O processo. Se ela de repente receber um mandado de prisão, é capaz de nem sequer perguntar o motivo e estender os braços às algemas.

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Vergonha dos pés (Fernanda Young)

- Your Highlight on Location 3096-3098 | Added on Sunday, August 16, 2020 4:16:01 PM

– Ana, eu não pude deixar de escutar... – É claro que não, ouvido não tem pálpebras... Não, não tem. E seria de grande alívio para o Homem, caso tivesse. O Homem fecha os olhos, o nariz, a boca, mas pouco consegue vedar sua audição. O Homem seria mais feliz se escutasse menos.

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Vergonha dos pés (Fernanda Young)

- Your Highlight on Location 3106-3108 | Added on Sunday, August 16, 2020 4:16:50 PM

A partir dali, e até hoje, o seu passado recente a remete para Jaime. Um pombo manco lembra Jaime. Uma barraquinha de pipoca lembra Jaime. É duro refazer as imagens das coisas, depois que se convive alguns anos ao lado de outra pessoa. Vendo as coisas como se elas fossem cenário para o seu amor viver, e não simplesmente frascos, pombos, pipocas.

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Vergonha dos pés (Fernanda Young)

- Your Highlight on Location 3290-3291 | Added on Sunday, August 16, 2020 4:26:08 PM

Todo mundo já passou por decepções amorosas. E de nada adianta saber disso, enquanto se está sofrendo. A dor sentida parece ser a única no Universo.

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Vergonha dos pés (Fernanda Young)

- Your Highlight on Location 3305-3308 | Added on Sunday, August 16, 2020 4:27:16 PM

O que tenho é tédio, tédio de tudo e tudo mais. Quero dormir, mas não consigo. Quero levantar-me e andar léguas, mas um sono incontrolável se apodera de mim. Sou assim. Uma pessoa que, por algum motivo misterioso, aprendeu a sofrer e, gostando ou não, viverá sempre assim: sofrendo. Nenhum motivo mais será necessário, nenhuma dor, nenhuma perda. Apenas o dormir ou não dormir, o acordar e o nada a fazer, além de ficar na cama pensando sobre os meus pés e os pés de toda a humanidade.

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