sábado, 2 de maio de 2020

Laços (Domenico Starnone)

Caso tenha esquecido, egrégio senhor, permita-me recordar: sou a sua mulher. Sei que antigamente isso lhe agradava e agora, de uma hora para outra, já começou a aborrecê-lo. 19

Por muito tempo você disse disparates, com uma tranquilidade pedante, sobre os papéis em que nos aprisionamos ao casar - o marido, a esposa, a mãe, os filhos - e nos descreveu - a mim, a você, aos nossos filhos - como engrenagens de uma máquina desprovida de sentido, forçados a repetir para sempre os mesmos movimentos tediosos. E prosseguiu assim, citando de vez em quando algum livro para que eu me calasse. 21

Você não está de jeito nenhum lutando contra uma instituição opressora, que reduz as pessoas a funções. Se fosse assim, perceberia que concordo com você, que também quero me libertar e mudar. Se fosse assim, uma vez desfeita a família, você pararia diante do precipício sentimental, social e econômico para o qual está nos empurrando e se apressaria em reconhe cer nossa afeição, nossos desejos. Mas não. Você quer se livrar de Sandro, de Anna e de mim como pessoas. Somos vistos como obstáculos à sua felicidade, sentidos como uma armadilha que sufoca sua vontade de prazer, considerados um resíduo irracional e maligno. Você disse para si mesmo desde o início: preciso recuperar minha vida, ainda que isso os destrua. 28

Nos dias se guintes me senti realmente bem. Saboreei a sorte de ser há setenta e quatro anos uma transmutação feliz da substância sideral que borbulha nas fornalhas do universo, um fragmento de matéria viva e pensante sem muitas indisposições e por puro acaso com uma escassa experiência de infortúnios. 46

Quanto ao resto, como era bom viver, como era bom ter vivido. Eu mesmo me espantei com o otimismo, sentimento para o qual não tenho nenhuma vocação. 46

Era ela quem cuidava da casa como se fosse um organismo vivo, era ela quem a mantinha limpa e arrumada, que impusera aos filhos e a mim, durante anos, o respeito a regras incômodas e no entanto úteis para que encontrássemos cada coisa no seu lugar. 50

Há uma distância que conta mais do que os quilômetros e talvez mais até do que os anos-luz: a distância das mudanças. 84

Tanto eu quanto ela conhe cemos a arte da reticência. Da crise de tantos anos atrás ambos aprendemos que, para viver juntos, é preciso dizer bem menos do que calamos. Funcionou. O que Vanda diz ou faz é quase sempre o sinal daquilo que esconde. 101

Mas achava que devia amar só você, para sempre, e então olhava para o outro lado, me dedicava aos ca prichos das crianças. Que estupidez. Admitindo que eu o tenha amado - e hoje não estou certa disso: o amor é um recipiente no qual enfiamos tudo -, durou pouco. Com certeza, para mim, você não foi nada de único, nada de intenso. Apenas permitiu que eu me considerasse uma mulher adulta: viver a dois, o sexo, os filhos. Quando você me abandonou, sofri sobretudo pelo que sacrifiquei inutilmente a você. E quando o recebi de volta na casa, só o fiz para que você me restituísse aquilo que me tomara. Mas logo entendi que, no emaranhado de emoções e desejos e sexo e sentimentos, era difícil estabelecer o que você devia me devolver(...) 115

- Como você é bondoso. Como todos vocês são bondosos com as mulheres. Seus três grandes objetivos na vida são: nos comer, nos proteger e nos fazer mal. 139

O romance lida com impulsos confusos, incontroláveis, que ameaçam romper o que consideramos sagrado. Na verdade, é um romance sobre o que acontece quando as estruturas – sociais, familiares, video lógicas, mentais, físicas - desmoronam. Questiona por que nos damos ao trabalho de criar estruturas, se no final vamos nos ressentir delas, fugir e desmantelá-las. E sobre nossa ne necessidade, coletiva e primordial, de ter uma ordem, e sobre nosso horror a espaços fechados, que é tão primordial quanto a primeira. (Jhumpa Lahiri) 8